sábado, 27 de fevereiro de 2010

Nos tempos da goiabinha

– Quando a onça já está morta, aparecem os que querem tirar-lhe o couro!

Este foi o final do discurso do vereador emedebista, num comício com os candidatos do MDB, onde Lázaro Barbosa era a figura principal, como candidato ao Senado.

Neste ano, 1974, mais uma vez não tínhamos eleições para governador. A Emenda à Constituição aprovada em 1973, suspendendo a eleição direta para Governador em 1974, decepcionou e irritou muita gente pelo Brasil inteiro. Em Goiás os principais líderes do MDB, Anapolino de Faria e José Freire, Deputados Federais mais votados do partido em 1970 desistiram de disputar a reeleição, desanimados por mais um golpe à democracia, dado pelo regime militar. Fernando Cunha e Juarez Bernardes disputaram à reeleição. Iturival Nascimento, Genervino da Fonseca e eu, nos candidatamos ao lado de outros companheiros, formando a chapa emedebista à Câmara.

A grande novidade foi a disposição de Lázaro Ferreira Barbosa, tendo Dário de Paiva e Dino Américo como suplentes, para se candidatar ao Senado. Inicialmente tudo parecia brincadeira. Todos indagavam:

– Como se atrevem a enfrentar a Arena? Será que não perceberam que Manoel dos Reis “ganhou na loteria” quando foi escolhido para ser o candidato da Arena?

Manoel dos Reis era o preferido de Leonino Caiado para substituí-lo no governo do estado. A cassação de José Batista Jr., prefeito de Anápolis, com a transformação do município em Área de Segurança Nacional facilitou as coisas para os adversários de Leonino dentro da Arena, quando Irapuan Costa Júnior foi designado o primeiro prefeito nomeado de Anápolis. Prestigiado pelos militares que dirigiam o País, logo se notou que a passagem de Irapuan pela prefeitura seria provisória:

– Irapuan está usando o trampolim. Seu destino é a governadoria no ano que vem! Afirmavam os contrários a Leonino na Arena.

Não deu outra, Irapuan Costa Júnior foi escolhido, sem grande surpresa, para o mundo político goiano. Como prêmio de consolação, os arenistas “brindaram” Manoel dos Reis com o lançamento da sua candidatura ao Senado.

Iniciados os programas pelo rádio e televisão, o MDB ganhou força e Lázaro Barbosa de candidato simbólico passou a ser a maior atração nos comícios, fazendo sua candidatura crescer de forma inacreditável.

Quase ao final da campanha eleitoral, um líder de região distante convidou-nos, Lázaro, Soyer e eu, para um comício. Numa quarta-feira de manhã estávamos na praça principal da cidade, enfeitada com nossa propaganda eleitoral, palanque equipado com som potente e muita gente para nos ouvir e aplaudir. O líder fez a saudação aos candidatos, justificando seu apoio ao MDB. Em seguida falamos, Soyer, eu e Lázaro fazendo o encerramento.

Terminados os discursos, já nas despedidas, o apresentador foi surpreendido por um vereador do MDB que não havia sido escalado para falar, pedindo oportunidade para discursar. Muito democrático, o líder acenou concordando, quando então, o vereador falou sobre sua trajetória política, fidelidade ao MDB, dificuldade para exercer o seu mandato na oposição, afirmando apoio que hipotecava às nossas candidaturas e encerrou:

– Quando a onça já está morta, aparecem os que querem tirar-lhe o couro!

Não ficou claro para quem ele estava enviando o recado, mas antes da nossa chegada ao município naquela manhã, havia mesmo um comentário de possível apoio das lideranças presentes a candidatos da ARENA. Mas, tanto o líder da região como muitos outros companheiros sempre participavam das campanhas estaduais apoiando candidatos do MDB e naquela manhã o apoio estava sendo confirmado.

Sem maiores comentários, fomos todos convidados para o almoço, assim como o próprio vereador. Lázaro, Soyer e eu deixamos a cidade logo depois, para compromissos em outros municípios. Naquele tempo ainda não havia o conforto do celular e nem tão pouco o asfalto na maioria das cidades de Goiás. Ao passar em casa, de onde seguiria para outro compromisso, Onaide assustada, olhos arregalados me disse:

– Telefonaram para você, dizendo que dois desconhecidos fizeram uma armadilha a um vereador da cidade em que você estava e deram-lhe uma sova com vara de goiabinha!

Pingue-pongue da verdade

– Que irmãos coragem que nada! Eles são mesmo irmãos metralha!

A intenção de nossos adversários políticos era evitar a comparação positiva dos irmãos Santillo, Henrique, Romualdo e eu, com os irmãos carismáticos da novela da Globo, “Irmãos Coragem”. Queriam nos comparar com os “irmãos do mal”, dos quadrinhos de Walt Disney.

O fato é que até mesmo a crítica de nossos adversários, com intuito de nos ridicularizar, foi carinhosamente assimilada e adotada pelos nossos admiradores como ação positiva dos irmãos que “metralhavam” a ditadura e suas mazelas.

A campanha eleitoral de 1974 foi a mais aberta de todas no período do Regime Militar. O General Ernesto Geisel, escolhido Presidente da República, em substituição ao general Emilio Garrastazu Médici, estava disposto a promover a abertura “lenta e gradual” no sistema político brasileiro. A principal novidade naquela campanha eleitoral foi o direito dos candidatos dos dois partidos existentes, Arena e MDB, de usarem em tempo proporcionalmente igual, o horário de rádio e tevê, para propaganda eleitoral gratuita. Com essa inovação na campanha eleitoral, ficou evidente a divergência entre os grupos do Presidente Geisel e do ex-Presidente Médici.

Administrando com mão de ferro, o Presidente Médici passou uma imagem ao cidadão comum, menos informado, de estadista e grande governante. A conquista do tricampeonato mundial de futebol pela equipe brasileira, aliada à forte censura à imprensa, provocou aniquilamento das forças oposicionistas e dos movimentos populares. Foi a época do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, impingindo à nação uma euforia nacionalista.

O grupo do Presidente Geisel reconhecia os mais elementares desrespeitos à pessoa humana, praticados pelo governo antecessor, nas Delegacias de Ordem Política Social, DOPS, nos Estados, DOI-CODI, em nível nacional, Operação Bandeirantes, que era praticamente um esquadrão da morte, eliminando presos comuns e políticos e outras arbitrariedades. Para encobrir esta situação de arbítrio, de torturas e assassinatos oficiais, o governo alardeava um falso crescimento econômico através do chamado “milagre brasileiro”.

No início do Governo Geisel a crise do petróleo desmontou a farsa do milagre brasileiro, mergulhando o país numa das suas maiores crises econômicas de todos os tempos. Era preciso desmistificar a ilusão imposta à população da imagem de estadista do Presidente Médici. Geisel estava disposto a isto e abriu espaço para a oposição durante a campanha eleitoral de 1974.

– Henrique, vamos fazer o programa eleitoral juntos, você pergunta eu respondo, depois eu pergunto e você responde. Vamos fazer um pingue-pongue!

– Isso mesmo Adhemar, vamos colocar este nome: “Pingue-pongue da Verdade!”

Nesse clima fizemos ao vivo nossa participação pelo rádio e pela TV.

Como candidato a Deputado Estadual, Henrique tinha seu espaço, o mesmo acontecia comigo, na qualidade de candidato a Deputado Federal. Resolvemos somar nossos horários gratuitos na TV, fazendo apresentação em conjunto, o que nos dava um tempo maior.

O “Pingue-pongue da Verdade” logo se tornou um sucesso devido ao interesse da população em saber o que realmente acontecia no Brasil. Por ser um programa contundente e corajoso, o horário do MDB era imbatível em audiência. Habituado a ouvir apenas as informações oficiais liberadas pela censura, para o telespectador as verdades oposicionistas, mesmo que tímidas e limitadas, chegaram como esperança para mudanças. Henrique e eu já tínhamos grande entrosamento na apresentação do nosso programa de rádio “O povo falou, tá falado”, o que facilitou nossa apresentação ao vivo, pela TV. Por todos os locais onde passávamos as pessoas nos cumprimentavam pelo “Pingue-pongue da Verdade”.

Éramos conhecidos por todo o Estado como os “Irmãos Coragem”, à semelhança dos protagonistas da novela das 20 horas da televisão Globo. Até mesmo a crítica de nossos adversários, com intuito de nos ridicularizar taxando-nos de “irmãos metralha”, foi carinhosamente assimilada e adotada pelos espectadores como ação positiva de uma dupla que “metralhava” a ditadura e suas mazelas.

O MDB usou com competência e sabedoria seu espaço no rádio e na televisão durante esta abertura dada por Geisel, em 1974, e o resultado foi visto em todo o Brasil. O MDB elegeu 16 senadores, algumas centenas de Deputados Estaduais e quase uma centena de Deputados Federais.

Devido a esta abertura que o Governo Geisel foi forçado a promover, o Brasil foi despertado em todos os seus quadrantes e o regime autoritário a partir de 1974, em virtude da força da oposição, começou a enfraquecer. Por mais que viessem casuísmos, restrições e fechamentos antidemocráticos, as forças populares forçaram o declínio da opressão ditatorial, até o retorno da democracia no país.

MDB perde para ARENA

As consecutivas vitórias do MDB em Anápolis fizeram história na vida política do município, mas os golpes que os emedebistas receberam a partir de 1972 pelas forças da repressão foram muito duros.

José Batista Jr. eleito em 1972 havia sido afastado da Prefeitura. O município fora enquadrado como Área de Interesse da Segurança Nacional. A Rádio Carajá fora invadida, com destituição dos seus administradores, que eram emedebistas. A Rádio Santana fora fechada pelo Ministro Quandt de Oliveira, sendo negada a renovação de outorga para os proprietários, que eram do MDB. Assim estava preparado o cenário que os arenistas entendiam especial para o controle do eleitorado anapolino.

Com a posse do Governador Irapuan Costa Jr., o empresário Jamel Cecilio foi nomeado prefeito, partindo para organizar sua base política no município. Cooptou integrantes do MDB, inclusive para se candidatarem pela Arena nas eleições municipais de l976.

Contando apenas com os que resistiram e poucas lideranças novas que apareceram, formamos a chapa emedebista para disputar as vagas na Câmara Municipal. Nossos companheiros contavam tão somente com apoio popular.

Enfrentamos esta campanha contra recursos financeiros, estrutura do poder econômico, tráfico de influências, sem ter como recorrer legalmente. Nesse clima desfavorável e com forças tão desiguais fomos para a disputa eleitoral de 1976.

Realizado o pleito e apurados os votos, perdemos por pouco mais de setecentos votos, elegendo sete vereadores, enquanto a Arena ficou com oito cadeiras.

Esse resultado estimulou os arenistas, que alardeavam ter iniciado a marcha para a destruição do MDB e dos Santillo.

Mesmo não sendo uma vitória extraordinária devido à desigualdade na composição da lista dos candidatos e poder econômico usado pelos nossos adversários, além da força política para aliciar eleitores, foi motivo de grande festa para eles e um desafio para nós.

Como não tínhamos nada mais a fazer, só nos restavam a perseverança, ousadia e a esperança sempre presentes na nossa atitude e nos nossos discursos:

– Companheiros, este é um resultado atípico, fruto de arranjo unindo inúmeros fatores que favoreceram nossos adversários nesta eleição. Vamos nos preparar para as eleições de l978 e, com apoio do povo, vamos mostrar a força do MDB. Vamos trabalhar desde agora para uma grande vitória contra os inimigos da democracia em Anápolis, como já fizemos em l974!

Foi o que aconteceu.

Nos pleitos seguintes isto se confirmou com as vitórias do MDB em todas as eleições que disputou até 1988.

O Volks da Nilda Mota

Cansada, suando muito, a Vereadora Nilda Mota só falava, quase chorando:

– Não dá, não dá para virar!

Até que desistiu.

Então solicitei ao meu fiel companheiro:

– Tião, por favor, faça a manobra no carro!

Era um Volks, tipo fusca, que eu havia enviado para que a Vereadora Nilda Mota, liderança que despontava de forma extraordinária, fizesse o trabalho político de visitas na região de Formoso. E este foi um dos acontecimentos.

Com a decisão tomada por Henrique de se candidatar a Deputado Estadual, enfrentei a campanha de Deputado Federal em 1974.

Visitei os diretórios do MDB no vale do São Patrício, Médio Norte, Estrada de ferro e Região de Anápolis. Carlos Wilson, Tião Borges, o Tião Gordo, Vicente Alencar e Hiran Bezze eram meus companheiros. Sempre revezava com um deles nas minhas constantes viagens.

Certa feita em Formoso, na residência do Firmino, antigo morador daquele município e amigo de longas datas de meu pai, marquei uma reunião. Nas primeiras horas de uma terça-feira quente, típica da região norte do estado, entrando no recinto da reunião, fui recebido por um participante, já com um copo de pinga pura do alambique artesanal:

– Aqui a gente recebe as pessoas importantes oferecendo cachaça, da melhor! Pode tomar que é pura.

Não querendo fazer feio, mesmo depois de ter bebido copo de leite e comido pão com manteiga naquela hora, recebi o copo e tomei a dose que me havia oferecido.

A todo instante o bêbado aparecia com o copo cada vez mais cheio, me estendendo a mão e passando para mim. Para me livrar, levava o braço para trás, passando o copo para o Tião Borges, que tomava um pouco e jogava a restante fora. Só assim me foi possível fazer a estréia em Formoso, sem sair carregado ou cambaleando. Em compensação, terminada a reunião o Tião Gordo não sabia nem em que cidade estávamos.

Chegamos a Trombas, ainda Distrito de Formoso, Nilda Mota Lucindo, a maior líder feminina do Médio Norte, Vereadora mais votada proporcionalmente de todos os tempos em Formoso, estava organizando encontro a céu aberto, na principal praça do local. Havia grande gameleira, que, com sua sombra, abrigava uma multidão do sol escaldante.

O Deputado Estadual Juarez Magalhães, candidato à reeleição, e eu, apoiados por Nilda Mota e o diretório do MDB de Formoso, havíamos lhe enviado um Volkswagen, usado, muito ruim de mecânica.

No instante de fazer a manobra para que o alto-falante abrigado no teto do fusca ficasse de frente para a platéia, Nilda não conseguia de forma alguma virar o carro. Cansada, suando muito a Vereadora só falava, quase chorando:

– Não dá, não dá para virar!

Até que desistiu. Então, solicitei ao meu fiel companheiro:

– Tião, por favor, faça a manobra no carro!

Da mesma forma, Sebastião Borges, com toda sua habilidade de motorista, não conseguiu manobrar o Volks. Exausto por tentar tantas manobras sem sucesso, bem mais forte que Nilda, Tião Gordo agarrou no pára-choque do carro virando-o para o sentido que queríamos.

Só assim ficamos sabendo que o Volks que havíamos mandado para a Vereadora fazer a campanha no município só andava em linha reta.

Trabalhando todos os dias, o tempo todo, Nilda Mota fez de Lázaro Barbosa, Juarez Magalhães e eu, os mais votados naquele município. Seu carisma, simpatia e liderança contagiavam a todos que a conheciam. Morreu em conseqüência de um atropelamento na Avenida Universitária, quando descia do ônibus do qual retornava da Faculdade de Direito de Anápolis, a FADA, para sua casa, no inicio da Vila Santa Isabel.

Nilda Mota Lucindo morreu sem ver a Avenida Universitária duplicada por mim enquanto prefeito e nem mesmo participou do governo do seu querido MDB, pois a posse de Iris Rezende Machado, em 1983, foi na mesma época do acidente que a vitimou.

Nosso batalhão voluntário

– São esses dois aqui, eles estão causando o maior tumulto e contrariando a lei eleitoral!

– Que é isso, rapaz? Sai daqui bagunceiro, você é que está causando tumulto, nem sei quem é você! Disse Felipe Jorge Matar, para o Tostão, que assustado, não entendia nada.

Enquanto Tostão deixava o recinto às pressas, atônito, Felipão abraçava Edenval e Elcival Caiado, na maior felicidade.

Isto aconteceu na primeira eleição que disputamos na oposição em Anápolis.

Era 1974 e com a implantação da Base Aérea, o município fora enquadrado como área de Interesse à Segurança Nacional, sendo a cidade administrada por prefeito nomeado.

Henrique seria candidato a Deputado Estadual e eu a Federal. Meu irmão mais velho, Henrique, ficaria no eixo Anápolis – Goiânia, trabalhando pelas nossas candidaturas. Sentíamos pela reação popular que o povo estava ao nosso lado, nos estimulando a ir em frente. O conceito que o povo tinha a nosso respeito era de orgulho pela resistência que mantínhamos contra o regime opressor instalado no país em 1964, o que nos motivava a intensificar o trabalho. Acomodação ou preguiça não faziam parte do nosso dicionário. A nossa mensagem de resistência era levada com destemor e persistência. Os tropeços, como a cassação de prefeito José Batista Jr. e transformação do Município em Área de interesse à Segurança Nacional não nos desanimavam. Pelo contrário, nos davam mais motivação. Não tínhamos apego ao poder. Sabíamos fazer política na oposição. Nossas armas eram disposição, amor à democracia e coragem. Com um verdadeiro batalhão de homens e mulheres idealistas que também acreditavam na força popular, resistir era o lema único de todos. A influência do poder econômico, dentro do MDB não existia. A tática dos governistas era a de forçar prefeitos do MDB a aderirem, sempre com a velha e surrada cantiga de que só assim os benefícios chegariam ao seu município. Para cidade do porte de Anápolis essa manobra não funcionava, uma vez que o eleitor estava mais esclarecido.

Transcorrida a campanha eleitoral, nenhum incidente mais grave ocorreu, porque evitávamos aceitar as provocações que faziam. Nas eleições e na apuração dos votos não nos preocupávamos, porque nas seções eleitorais e mesmo nas juntas apuradoras, tínhamos simpatizantes em maioria, não deixando que o resultado da vontade popular fosse adulterado.

Vicente Alencar, presidente do MDB anapolino, designou Felipe Jorge Matar para delegado fiscal das eleições. Felipe reuniu os fiscais, passando-lhes instruções de que observando qualquer descumprimento à lei eleitoral, denunciasse o fato a um policial mais próximo. As informações constavam num manual entregue a cada um. No dia da eleição, tudo correndo dentro da normalidade, Tostão, um dos nossos fiscais voluntários, foi até o comitê do MDB atrás de apoio para retirar dois senhores, elegantemente trajados, que cumprimentavam eleitores na fila de secção em que trabalhava, no Banco do Brasil. Felipe logo deu o grito:

– Vamos lá, Tostão! Vou ensinar a você como se deve proceder. Seja quem for, vai para a cadeia. Cadeia, Cadeia... Entendeu?

Ao chegarem ao banco, na secção eleitoral, Felipe avistou os irmãos Edenval e Elcival Caiado, cumprimentando os eleitores. Elcival disputava com Henrique Fanstone os votos arenistas do município, enquanto Edenval, o mais velho dos filhos de Totó Caiado, dava apoio ao irmão. Tostão se aproximou dos dois e gritou para Felipão:

– São esses dois aqui!

– Que é isso, rapaz? Sai daqui bagunceiro, nem sei quem é você! Disse Felipe Jorge Matar, para o Tostão, que assustado, não entendia nada.

Enquanto Tostão deixava o recinto às pressas, atônito, Felipão abraçava Edenval e Elcival Caiado, na maior felicidade:

– Se algum desses meninos atrevidos mexer com os senhores, podem me procurar. Queremos tranqüilidade.

Perseguições e Armadilhas

– Adhemar, durante o meu período na prefeitura, não pude desenvolver minhas atividades profissionais como gostaria, não posso ir para Brasília se for eleito Deputado Federal.

Meu irmão estava disposto a se candidatar a Deputado Estadual ou não seria candidato a qualquer outro cargo assim que encerrou seu mandato de prefeito em Anápolis.

Queria ter mais tempo para exercer a medicina.

Ao deixar a prefeitura em 1972, Henrique voltou a trabalhar como médico pediatra no Hospital Santa Paula, atendendo pelo INPS e em raros casos, a consultas particulares.

Com o credenciamento do INPS – Instituto Nacional de Previdência Social, cada médico tinha uma cota mensal de consultas. Cumprida esta cota o INPS não remunerava os atendimentos excedentes. A maioria dos médicos se limitava a atender o número de consultas remuneradas pelo INPS.

Henrique não admitia que crianças voltassem para casa sem serem consultadas. Todas as crianças, cujas mães ou responsáveis lhe procurassem, eram atendidas, ainda que ele soubesse que os procedimentos não seriam pagos pelo INPS, ao ultrapassar a cota fixada pelo instituto.

O meu irmão era assim. Era do seu caráter atender aos humildes, por amor e solidariedade às pessoas desprovidas de recursos materiais.

Por atender a todas as crianças que o procuravam, Henrique encaminhava para internação hospitalar um número maior de pacientes que os demais pediatras que atendiam apenas o limite da cota oficial. O que se tornou natural, pois muitas vezes seu atendimento ultrapassava o dobro do atendimento pago pelo INPS.

Nossos adversários políticos o denunciaram, solicitando seu descredenciamento, apresentando como alegação o fato de ele estar internando crianças sem necessidade. Fazendo um levantamento apenas de dados oficiais, sem levar em conta os atendimentos efetivamente realizados e não remunerados pelo instituto, apresentaram a comparação entre as internações solicitadas pelos demais médicos pediatras de Anápolis e as encaminhadas por Henrique.

O Instituto Nacional de Previdência Nacional o descredenciou, não levando em conta as dezenas de pessoas atendidas diariamente no seu consultório.

É claro que houve interferência política daqueles que queriam barrar a grande admiração que Henrique despertava em toda população.

Viveu momentos de privações e sofrimento.

Resistiu com a ajuda da comunidade que acreditava no seu trabalho profissional, continuando a atender crianças de famílias carentes, mesmo sem remuneração.

Teve o apoio da Associação Médica de Anápolis, cujos representantes foram à Brasília desfazendo, depois de algum tempo, a trama que foi usada para descredenciá-lo. Assim, foi reconduzido como credenciado pelo INPS.

– Adhemar, durante o meu período na prefeitura não pude desenvolver minhas atividades profissionais como gostaria, não posso ir para Brasília se for eleito Deputado Federal.

Meu irmão estava disposto a se candidatar a Deputado Estadual ou não seria candidato a outro cargo. Mas logo encontramos uma armadilha no caminho.

No período da ditadura militar, de 1964 a 1985, as leis excepcionais se sobrepunham ao arcabouço de toda Legislação Ordinária. O Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, era, de todas as leis de exceção, a mais abrangente, pois com este Ato o Presidente da República estava acima da própria Constituição Federal, podendo cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, transformar eleições diretas em simples indicações pelas Assembléias Legislativas e até fechar o Congresso Nacional, como ocorreu em abril de l977.

Com base no AI-5, José Batista Jr., Prefeito de Anápolis, foi cassado e o município transformado em Área de Interesse à Segurança Nacional.

Com menor abrangência, a Lei de Segurança Nacional também intimidava os opositores ao regime militar. Havia ainda a Lei das Inelegibilidades, instrumento para ser usado pelo Judiciário, dando uma aparência de respeito ao estado democrático de direito.

Nas eleições gerais de 1970, quando Henrique era prefeito de Anápolis, foi reeleito Anapolino de Faria Deputado Federal e eu eleito Deputado Estadual. Alguns adversários no próprio MDB anapolino fizeram denúncia à Polícia Federal, acusando-nos de termos usado as máquinas da prefeitura de Anápolis nos municípios de Nerópolis, Goianápolis e Petrolina, em troca de votos.

Jesus Lisboa, delegado da Polícia Federal, ficou trinta dias em Anápolis ouvindo testemunhas de acusação e de defesa. Todas as audiências foram acompanhadas pelo advogado Vicente de Paula Alencar, integrante do Diretório Municipal do MDB. O aspecto fantasioso das denúncias e a total ausência de provas contribuíram para que o processo ficasse engavetado na Procuradoria de Justiça de Goiás.

Em 1974, Henrique ainda abalado com a cassação do mandato do Prefeito José Batista Jr., a transformação do Município de Anápolis em Área de Segurança Nacional e a suspensão mais uma vez da eleição direta para Governador, confidenciou-me que não disputaria para Deputado Federal por Anápolis, cuja cadeira ficou aberta com o firme propósito de Anapolino de Faria em não disputar mais um mandato. Seria um duro golpe para a nossa luta, pois a nossa visão era de ampliar as nossas forças em busca da redemocratização e do fortalecimento da estrutura emedebista.

Perguntei a Henrique por que não seria candidato a deputado federal, ele me respondeu:

– Adhemar, durante o meu período na Prefeitura não pude desenvolver minhas atividades profissionais como gostaria, não posso ir para Brasília.

– Henrique, e se eu me candidatar a Federal, você disputa para Assembléia Legislativa?

– Isso eu posso fazer. Posso ir à Goiânia e voltar todos os dias, continuando minha atividade médica.

Os companheiros eufóricos pela decisão que tomamos programavam encontros residenciais, concentrações e debates com estudantes, difundindo nossas candidaturas. Ao mesmo tempo, participávamos diariamente do programa “O povo falou, tá falado”, pela Rádio Santana.

Neste ambiente favorável, fui procurado pelo Dr. Decil de Sá Abreu, Promotor Público em Petrolina de Goiás, informando-me que recebera da Procuradoria de Justiça do Estado, processo da Polícia Federal de 1971, com denúncias contra mim e Henrique. Anapolino de Faria por não ser candidato fora excluído do processo. Decil de Sá, no entanto, garantiu-nos que não apresentaria a denúncia, mas que o processo viria para a Comarca de Anápolis com este objetivo, de nos denunciar.

A Lei de Inelegibilidade previa que para os crimes eleitorais, como procuravam nos enquadrar, o simples oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e o recebimento pelo Juiz, já nos tornariam inelegíveis. A armadilha já estava pronta. O Ministério Público de Anápolis apresentou a denúncia, ao contrário do Ministério Público de Petrolina, que através do Promotor Decil de Sá Abreu não encontrou elementos que pudessem nos incriminar.

O processo, que se aceito pelo juiz nos tornaria inelegíveis, foi enviado ao Judiciário, distribuído ao Juiz Clementino Alencar, Magistrado corajoso e justo que, por não ter encontrado nos autos qualquer indício que pudesse nos incriminar, determinou seu arquivamento.

Depois desta vitória judicial veio outra, a vitória eleitoral, Henrique eleito Deputado Estadual, o mais votado e eu Deputado Federal, o segundo mais votado da legenda MDB.

Percalços pelo caminho

Os processos jurídicos com o objetivo de nos afastar da vida política, propostos pelos nossos adversários políticos, foram apenas uma parte das dificuldades que enfrentamos.

Em inúmeras reuniões que Henrique Santillo e eu participávamos com grupos de estudantes, trabalhadores, produtores rurais, profissionais liberais e intelectuais em Anápolis e Goiânia, discutindo os rumos para o país, grupos esquerdistas de variadas tendências se reuniam numa mesma roda, em busca de projeto comum.

Obedecíamos àquela máxima do presidente nacional do MDB, Ulysses Guimarães, “estamos dentro de uma casa hermeticamente fechada e para abrí-la precisamos unir forças, sem distinção ideológica, para que cada um siga seu rumo depois que a porta estiver aberta”. Mesmo com profundas diferenças de pensamento, os grupos se mantinham unidos em busca do objetivo final, a derrubada da ditadura implantada em 1964 e o retorno à democracia.

Também não nos descuidávamos dos contatos com lideranças interioranas e nestas situações os percalços eram muitos.

Orizona

Sempre me senti entusiasmado com o contato com pessoas simples e amigas, como Pedro Pimentel, tesoureiro do MDB em Orizona, que nos acompanhou pelo interior do município visitando proprietários e trabalhadores rurais.

Certa vez, chovia forte, tornando as estradas municipais escorregadias e de difícil acesso. Na volta à cidade, após uma dessas visitas, a camionete do Pimentel, grudada no barro, nos obrigava a empurrá-la, enquanto o motorista manobrava o veículo e dizia com o maior contentamento:

– Quando contar que o futuro governador de Goiás, Henrique Santillo, empurrou meu carro em pleno lamaçal, tendo a roupa e o corpo cobertos pelo barro, ninguém vai acreditar!

De outra feita estávamos voltando da cidade de Orizona, quando o Vicente Alencar falou:

– Chegamos pessoal!

Meio atordoados, Henrique e eu fomos nos despertar já fora do carro.

Olhamos em volta, estava tudo escuro. Nem sinal de alguma construção que nos lembrasse a nossa cidade, Anápolis.

Esta situação aconteceu em plena campanha de 1974 para eleições de Deputados Estaduais, Federais e Senador.

Haveria um grande comício em Orizona.

Companheiros se mobilizaram durante muito tempo para que as lideranças de todo município se fizessem presentes. Lázaro Barbosa, candidato emedebista ao Senado era a figura mais esperada e sua presença aos eventos do partido era certeza de grande público.

Em Orizona a situação apresentava-se mais emocionante, porque o candidato a Senador dizia em todas as cidades por onde passava que havia nascido em Orizona, embalado num cesto de taquara. Aliás, pude acompanhar Lázaro Barbosa quando estava em Anápolis dizendo que era familiarizado com a cidade porque parte da sua infância a passara no distrito de Souzânia. Chegando a Itapaci, Lázaro fazia questão de alardear que residira durante muito tempo na Ponte Funda. Já em Petrolina conhecia todas as lideranças e região, pois trabalhara durante muitos anos na prefeitura local.

Era difícil uma região que Lázaro não fizesse a citação “dessas ruas poeirentas que pisei descalço quando criança”.

Acompanhado de Vicente Alencar e seu irmão Alexandre, seguimos no carro de Henrique Silva de Anápolis à Orizona. Comício grande, Lázaro muito assediado pelos eleitores, a cidade envaidecida com a presença do filho ilustre. Falaram todas as lideranças locais e visitantes até que por volta da meia-noite encerramos os discursos dando inicio ao show com cantores locais.

Sidon, integrante do MDB local, convidou-nos para um churrasco em sua casa. Alegando compromisso logo cedo no dia seguinte, Lázaro agradeceu e retornou à Goiânia. Nós ficamos e fomos atender a gentileza do Sidon.

Churrasco assado na hora, a conversa rolando, quando olhamos no relógio, passava das três da madrugada.

Na hora da saída, Henrique Silva e eu já fomos descartando a responsabilidade de dirigir. Foi quando eu chamei Vicente Alencar de lado e disse:

– Vicente, nós todos estamos sem condição de dirigir. O mais descansado é seu irmão Alexandre. Vamos entregar o volante para ele?

– Eu de olhos fechados sou melhor motorista que meu irmão descansado! Me ajudem a chegar até o carro que eu faço a gente chegar a Anápolis! Falou Vicente convicto.

Deixamos Vicente se acomodar no banco do motorista. Fiquei ao seu lado, no assento dianteiro, enquanto Alexandre e Henrique ficaram no banco traseiro.

Vicente Alencar não corria mais que quarenta quilômetros por hora, atropelando todos os buracos que encontrava pela estrada de chão. Seguros de que aquela velocidade não nos traria problemas maiores, fomos pegando no sono, enquanto Alexandre recitava poesias de sua autoria, para evitar o sono do nosso motorista. Só acordamos quando Alencar disse em tom vitorioso:

– Chegamos pessoal!

Meio atordoados, Henrique e eu fomos acordar já fora do carro. Olhamos em volta, estava tudo escuro e nada nos lembrava a nossa cidade, Anápolis.

– Chegamos onde Vicente?

– Em Anápolis!

– Quem disse que estamos em Anápolis?

– Olha a Praça Bom Jesus, gente!

– Que Praça Bom Jesus, Vicente! Nós estamos na Praça da Matriz de Silvânia.

Fizemos todo esforço para ficarmos acordados até chegarmos a Anápolis, sempre atentos ao nosso “motorista”.

Mara Rosa

– Será que erramos o endereço? Perguntei já preocupado.

Estávamos procurando a fazenda na qual uma grande concentração aconteceria. Depois da reunião, um churrasco nos esperava, como havíamos combinado algum tempo antes.

Desconfiados de que alguma coisa não dera certo, fomos entrando cautelosamente.

Com desencontros, devido à dificuldade de comunicação, temor de perseguição aos emedebistas, ainda assim, percorremos o estado de Goiás em busca de fortalecer o partido e de consolidar o nosso trabalho. Não foi tarefa fácil, pois com mínimos recursos financeiros, cortando o estado de sul a norte, leste e oeste num Fusca, a missão era penosa, mas gratificante.

Outra vez o amigo Tonico Leão, residente em Mara Rosa, norte do estado, bem próximo à Amaralina, nos convidou para uma grande confraternização política em sua casa, num certo dia 30. Dizia que tinha reservado duas novilhas para o grande churrasco. O compromisso daquele dia seria exclusivamente o grande evento. Saímos cedo de Anápolis. Foram quatro horas de viagem. Chegamos ao local do grande encontro e não havia o menor sinal de concentração política.

– Será que erramos o endereço? Perguntei já preocupado.

Ao nos aproximarmos da casa, apareceu Tonico sonolento:

– Hei gente, quanta satisfação em receber vocês!

– Tudo bem, Tonico?

– Tudo bem! Ali estão as novilhas que vão morrer dia 30.

Entendemos que o dia era mesmo 30, porém o mês era, por certo, outro.

Enfrentamos a viagem de volta com toda a caravana esfomeada.

Paramos num boteco de estrada para saborear pão com algumas latas de sardinha e assim, Henrique, seu cunhado Edward, seu filho Carlos Henrique, meu filho André Luís e eu, voltamos para Anápolis.

Estrela do Norte

Além das confusões de datas de reuniões, outras dificuldades eram desafio para a formação do partido oposicionista.

Filiar eleitores ao MDB era missão quase que impossível.

Até prisão os nossos companheiros enfrentaram, como Hilton Lucena, em 1971, na cidade de Estrela do Norte, quando foi preso por ordem do Juiz daquela Comarca. Hilton foi preso por estar filiando eleitores no MDB, ficou na única cela existente na cadeia pública local, juntamente com um maníaco que havia matado cruelmente quatro crianças em Mutunópolis, dias antes.

Seu colega Altivo sofreu tanta pressão da polícia por estar acompanhando Hilton que se mudou do município antes mesmo que chegássemos lá com o advogado Hiram Bezze, para defendê-los.

Foi a maior violência que presenciamos e denunciamos naquela época.

Nossa presença foi suficiente para que o Juiz relaxasse a prisão de Hilton Lucena, sem necessidade de apelarmos para o Tribunal de Justiça, com habeas corpus.

Outras arbitrariedades, contudo, continuaram acontecendo.

Jaraguá

Objetivando estruturar o Diretório Municipal do MDB de Jaraguá, obtive colaboração do companheiro Militino, farmacêutico conceituado naquela cidade. Militino ficou responsável para fazer filiações dos interessados em compor a oposição naquele município. O companheiro buscou apoio na zona rural com amigos fazendeiros e trabalhadores, uma vez que no setor urbano era quase impossível conseguir alguma inscrição ao MDB. As assinaturas foram conseguidas nas mais variadas regiões até que houvesse o número legal para organização do Diretório.

Todo satisfeito, Militino foi ao cartório eleitoral registrar os filiados no MDB. Surpresa total. Praticamente todos filiados haviam enviado oficio ao juiz eleitoral pedindo o cancelamento de inscrição.

Foram inúmeras as situações inusitadas que vivemos, mas valeu a pena!

Politização e Jornal Nacional

– Mas, Escobar, por que você não começou a reunião? Não havíamos combinado que eu estava em outra reunião, chegaria atrasado e você começaria a falar sobre o nosso trabalho político, sobre as nossas propostas?

O companheiro Escobar Cavalcante era um dos grandes colaboradores de nossas campanhas e estava sempre disposto a conduzir reuniões até que chegássemos.

Nossa tarefa de motivação política e ações de conscientização popular contra a ditadura foram persistentes e contínuas. Fosse período eleitoral ou não, lá estávamos promovendo reuniões domiciliares com 10 ou 20 participantes. Os encontros aconteciam nos mais diversos pontos da cidade. Geralmente neles o comparecimento era de quem realmente estava preocupado com os destinos do Brasil. Não tínhamos cargos para distribuir entre os presentes. Nem sequer podíamos prever quando é que a redemocratização aconteceria. Os que iam as reuniões acreditavam que a conscientização popular era fator primordial para sairmos da camisa da força em que estávamos submetidos. Fazíamos nossa parte, com destemor e amor à causa.

Para um dos nossos encontros políticos semanais, acertei com Dona Benedita, companheira dedicada e convicta, que com sua participação chegaríamos mais cedo ao fim da ditadura, reunião em sua casa, na Rua Floriano Peixoto, acima da Mauá. Como deveria participar de outra reunião na Vila Góis, pedi ao José Escobar Cavalcante, participante do grupo, que fosse à residência de Dona Benedita, enquanto eu falaria aos amigos da Vila Góis. Pedi-lhe que fosse conversando, debatendo com os participantes, até que eu chegasse para promover o encerramento.

Quando cheguei, encontrei Escobar e toda turma assistindo novela, olhos fixos na tela da televisão, sem nenhuma conversa. Desligaram o aparelho e fiz o que seria o encerramento. Só no instante em que me retirava fiquei sabendo que Escobar não havia falado nada na reunião. O convidei para me acompanhar e indaguei, porque não havia aberto os trabalhos.

– Quando cheguei, Dona Benedita me recebeu e disse que o pessoal estava todo lá, aguardando!

– Mais um motivo para que você não ficasse quieto assistindo TV!

– Claro. Acontece que depois de cumprimentar todos eles, eu disse: “Bem gente”... O senhor que estava na minha frente colocou o dedo indicador da mão direita sobre os lábios e fez: -“Psssssssssiu... Jornal Nacional!”

– A partir daí não tive coragem de interromper nem propaganda da Coca-Cola.

Jair Sapateiro e o Cartório Eleitoral

– Meu título, que recebi ontem, está com a fotografia de outra pessoa.

No título eleitoral constavam dados pessoais e foto do eleitor. Mas como todo o processo de inscrição eleitoral era executado manualmente, aconteciam, por vezes, alguns erros. Era o que me dizia, indignado, o Jair, conhecido como Sapateiro, em Formoso.

Os simpatizantes do MDB de Estrela do Norte abriram as portas para o nosso trabalho político naquela região, conhecida como Médio Norte Goiano. Em quase todas as viagens eu contava com a companhia do advogado Vicente de Paula Alencar.

Uma das reivindicações da região era a criação da Liga de Futebol do Médio Norte. Um dos incentivadores da idéia, Ranulfo Batista Alcântara, posteriormente prefeito de Formoso, que na época secretariava o prefeito Manoel de Fátima, o Neném, em Santa Tereza. Depois de discutir com as lideranças políticas e esportivas locais, contei com apoio do presidente da Federação Goiana de Desportos, à época, Baltazar de Castro. Documentos em dia levei o Divino Gonçalves Pires para instalar e presidir a liga. Muitos campeonatos foram realizados dos quais pude assistir vários jogos, consolidando minha ligação com a região.

Por ser uma região de conflitos agrários, freqüentemente éramos chamados para mediar litígios envolvendo grileiros com posseiros, sendo estes últimos sempre expulsos das terras sem qualquer negociação. Num desses atritos, Jair Sapateiro, posseiro de pequena gleba de terras praticamente dentro da cidade de Formoso, após muitas tentativas, me pediu socorro, pois, juntamente com outros pequenos posseiros, estava sendo ameaçado por grileiros acobertados por fortes políticos da região e apoio policial.

Vicente Alencar e eu nos dirigimos para o local do conflito, nos reunindo com todos eles. Eram aproximadamente doze pequenos proprietários que estavam sob ameaça de um grande proprietário rural do sul de Goiás, que planejava iniciar seu latifúndio também em Formoso. Analisados os documentos, vimos que o tempo de posse de todos lhes garantia o direito da terra.

Depois de fazermos a vistoria no local, saímos pela principal avenida de Formoso, para dar demonstração à população do nosso apoio aos posseiros, que eles tinham defensores.

Visitamos algumas lideranças emergentes do MDB local e aproveitamos para conhecer figuras destacadas que não pertenciam a nenhum partido político, mas que haviam convivido com o grande líder dos trabalhadores rurais daquela região, José Porfírio. Ele era deputado estadual e foi preso pelo regime ditatorial. Libertado, nunca voltou à sua casa. Depois de sair da prisão, em Brasília, desapareceu e nunca mais foi encontrado. Sabe-se apenas que foi visto na rodoviária de Brasília, próximo ao conjunto Nacional, e de lá desapareceu sem deixar nenhuma outra informação.

Quando passávamos pelas proximidades do Fórum, onde estava o cartório eleitoral, Jair Sapateiro, um dos líderes do nosso partido, com ar de desprezo e indignação exclamou:

Ali naquela casa acontecem os maiores absurdos, apontando para o cartório eleitoral.

Que absurdos são esses Jair? Indaguei.

– Meu título mesmo, que recebi ontem, está com a fotografia de outra pessoa.

– Que é isso Jair? Seu título está com fotografia de outra pessoa?

Naquela época o título eleitoral trazia a foto 3x4 do eleitor.

– Sim! Falou Jair Sapateiro com mais indignação.

Chamei a atenção do Vicente Alencar para o caso. Contei sobre o título com a foto errada que o nosso líder acabara de relatar. Vicente rapidamente quis saber mais detalhes:

– Jair, mas o seu nome no título está certo, não é?

– Doutor, o pior de tudo é que nem o nome é o meu.

Dá para perceber que as dificuldades que enfrentamos eram de todos os níveis. O líder Jair Sapateiro recebeu título de outro eleitor e saiu propalando que o cartório era desorganizado, usando foto e nome de outra pessoa no título que jurava ser o seu.

O valentão de Jaú e a marcha

– Não tenham medo, ele não ofende ninguém!

Horácio, conhecido como o valentão de Jaú, entrando na pousada foi logo determinando que Ventura buscasse uma cerveja, das expostas na prateleira próxima ao telhado, já que geladeira era um luxo não conhecido por ali, naquela época.

Henrique Santillo, Vicente Alencar, Joceli Machado e eu estávamos resolvidos a ampliar nossos planos, fazendo investimento econômico numa área rural, em Jaú, no município de Peixe.

Convidamos Waldivino Moreira da Silva, o “Chumbinho”, para que fosse nosso motorista até Estrela do Norte, quando iríamos até o Jaú, na caminhonete do Chico Manéco, filho do grande líder José Luiz Có, o Zé Maneco, que nos apoiava na Vila Jaiára, em Anápolis. “Chumbinho” alardeava que era motorista de carretas. Precisávamos da segurança de um profissional experiente e bom no volante.

De Anápolis, num TL niquelado, cor amarela, Vicente Alencar, Joceli Machado, Waldivino Moreira e eu partimos bem cedo rumo ao norte de Goiás.

Logo nos primeiros instantes da viagem percebemos o nervosismo de “Chumbinho”, o que compreendemos ser normal. Ao entrarmos na BR-153, passou a dirigir pelo acostamento, num vagar de causar irritação. Em frente à antiga entrada para a Base Aérea dos Mirage, próximo à entrada para Miranápolis, “Chumbinho” acelerou o TL, ainda no acostamento, imprimindo velocidade acima do normal. Eu que me encontrava no banco da frente ao seu lado, só tive tempo para gritar:

– Olha a pedra, “Chumbinho”.

– Pode deixar. Vou dividir.

A pancada foi tão violenta que a parte da frente do TL ficou toda amassada, deixando o carro estático, travado pelo forte impacto da batida. Inconformado com o ocorrido, apenas lhe disse:

– “Chumbinho”, você não disse que é motorista de carreta?

– Se eu estivesse dirigindo carreta, teria dividido a pedra.

Voltamos de carona e trocamos de carro e de motorista para seguir viagem até Estrela do Norte.

Para chegar a Jaú tínhamos que ir até Mata Azul, distrito de Formoso, viajando por uma estrada municipal de Peixe, sem nenhuma infra-estrutura. Havia uma ponte sobre o rio Piabanha, onde o motorista tinha que ser verdadeiro artista do volante. A ponte não possuía assoalho, e o carro teria que passar sobre duas estacas de aroeira. Contando com a eficiência do Chico Maneco fizemos todo trajeto sem maiores complicações até chegarmos ao Jaú.

Ficamos hospedados na pousada do Ventura. Cidadão simples, conhecedor profundo da região. Recebeu-nos atenciosamente, preparando paçoca de carne batida em pilão e frango caipira na caçarola. Em pouco tempo tomamos conhecimento das coisas locais. A pousada do Ventura não estava preparada para abrigar toda a caravana. Vicente Alencar, Chumbinho e Chico Maneco foram para a pousada do Piolho, assim conhecida pela grande quantidade de galinhas poedeiras debaixo das camas. Não era sempre que hóspedes procuravam sua casa de hospedagem, por isso agasalhava suas galinhas dentro de casa evitando a destruição por raposas, gambás e outros animais silvestres.

No dia seguinte, levantamos bem cedo, para irmos até as terras pretendidas, na região do Piabanha. Beleza natural incomparável. Divididas por duas cercas naturais: de um lado o rio Piabanha e do outro uma enorme serra, a mais alta e intensa do local, composta de cerradão invejável. Fomos até o local num jipe Willis, alugado pelo Ventura, único capaz de circular ali, pela inexistência de estrada e grande quantidade de cupins. Foi um verdadeiro rally para fazermos o percurso de ida e volta.

Retornando ao Jaú, sol escaldante, cansados pelo solavanco do jipe e pelas caminhadas que fizemos pelas trilhas do cerradão cobiçado, fomos diretos para a pousada do Ventura. Mal havíamos nos acomodado, apareceu no terreiro em frente a porta de entrada da pousada um cidadão de estatura mediana, aproximadamente 40 anos, portando na cintura uma enorme peixeira. Ao avistá-lo, Ventura com voz baixa nos esclareceu que aquele era o valentão do lugar. Advertiu:

– Não tenham medo, ele não ofende ninguém!

Horácio, este era seu nome, adentrou a pousada e foi logo determinando que Ventura buscasse uma cerveja das expostas na prateleira próxima ao telhado. Ventura pegou a garrafa quente e tirou a poeira com um espanador. Horácio ao vê-la sobre a mesa determinou que trouxesse quatro copos, que estavam mergulhados numa bacia de alumínio, cuja água já estava ali há alguns dias. Quando Ventura retirou o abridor da gaveta, recebeu ordem do Horácio para que não abrisse a garrafa. Tirou a peixeira da cintura e estourou a tampinha que bateu no telhado e voltou sobre a mesa, enquanto o líquido saía em forma de espuma. Rapidamente passou a mão nos copos e foi enchendo cada um deles com aquele líquido quente e espumoso. Joceli Machado apressou-se em beber o seu copo e antes que tomasse o último gole solicitou ao Ventura que trouxesse outra cerveja:

– Se possível mais quente e sem limpar o “casco”!

Joceli pegou a garrafa fazendo pontaria aleatória, que acabou na direção do rosto do valentão, tirou em ato contínuo o revólver da cintura, abrindo a garrafa com o gatilho do 38. A tampinha explodiu no peito de Horácio que tomou um banho de espuma da cerveja quente que saía em grande jato. Horácio balbuciou algumas palavras inaudíveis, deixando o local para nunca mais ser visto por nós.

No outro dia fomos a Peixe na caminhonete do Chico Maneco. Mesmo sendo veículo novo, a caminhonete não estava com todos os indicadores do painel funcionando.

Quando já tarde, na metade do percurso de volta ao Jaú, acabou o combustível, nos deixando na estrada. Chico Maneco e “Chumbinho” decidiram acompanhar um mateiro que passava pelo local, quando tentariam buscar socorro. Vicente Alencar, Hilton Lucena, Joceli Machado, um velhinho que nos pediu carona e eu ficamos no local. Quando perguntamos ao nosso carona sobre o movimento da estrada, respondeu:

– Só na sexta-feira o Tião da bagagem passa por aqui!

Era terça-feira e não sabíamos se Chico Maneco retornaria.

Vicente Alencar, lembrando da sua passagem pelo exército, resolveu fazer da caminhada de retorno tarefa agradável.

– Quando cumpri meu serviço militar, aprendi que para uma grande caminhada é recomendável que o percurso seja feito em forma de marcha, em fila indiana.

Assim determinou que Hilton Lucena ficasse na frente do pelotão e o velhinho no último lugar. Ele, Joceli e eu ficaríamos no meio. Disse-me antes de autorizar o início da marcha:

– Adhemar, aprendi, também no Exército, que onça só ataca quem está na frente ou atrás do pelotão.

Formação de acordo com as ordens do comandante Vicente Alencar, começamos a jornada:

– Pelotão, sentido! Um, dois! Um, dois! Um, dois! Levante a cabeça, estufe o peito e marque a cadência... Um, dois! Um, dois...

Dando instrução com voz de comando, Vicente fez com que vencêssemos o primeiro quilômetro do percurso. Já estava escuro e apenas enxergávamos o clarão das queimadas, naturais e muito usadas naquela época do ano. Os integrantes do pelotão, animados, erguiam suas vozes que ecoavam pelo vale:

– Levante a cabeça, estufe o peito, marque a cadência...

O pelotão repentinamente não ouviu mais a voz de comando do líder Vicente Alencar, apenas barulho de corpo caindo ao chão e rolando ribanceira abaixo. Perdendo o equilíbrio no terreno inclinado, Vicente escorregou, caiu rolando pela encosta da estrada até chegar ao fundo do vale. Quando parou, só ouvimos sua voz de comando:

– Pelotão! Fora de forma...