sábado, 27 de fevereiro de 2010

O valentão de Jaú e a marcha

– Não tenham medo, ele não ofende ninguém!

Horácio, conhecido como o valentão de Jaú, entrando na pousada foi logo determinando que Ventura buscasse uma cerveja, das expostas na prateleira próxima ao telhado, já que geladeira era um luxo não conhecido por ali, naquela época.

Henrique Santillo, Vicente Alencar, Joceli Machado e eu estávamos resolvidos a ampliar nossos planos, fazendo investimento econômico numa área rural, em Jaú, no município de Peixe.

Convidamos Waldivino Moreira da Silva, o “Chumbinho”, para que fosse nosso motorista até Estrela do Norte, quando iríamos até o Jaú, na caminhonete do Chico Manéco, filho do grande líder José Luiz Có, o Zé Maneco, que nos apoiava na Vila Jaiára, em Anápolis. “Chumbinho” alardeava que era motorista de carretas. Precisávamos da segurança de um profissional experiente e bom no volante.

De Anápolis, num TL niquelado, cor amarela, Vicente Alencar, Joceli Machado, Waldivino Moreira e eu partimos bem cedo rumo ao norte de Goiás.

Logo nos primeiros instantes da viagem percebemos o nervosismo de “Chumbinho”, o que compreendemos ser normal. Ao entrarmos na BR-153, passou a dirigir pelo acostamento, num vagar de causar irritação. Em frente à antiga entrada para a Base Aérea dos Mirage, próximo à entrada para Miranápolis, “Chumbinho” acelerou o TL, ainda no acostamento, imprimindo velocidade acima do normal. Eu que me encontrava no banco da frente ao seu lado, só tive tempo para gritar:

– Olha a pedra, “Chumbinho”.

– Pode deixar. Vou dividir.

A pancada foi tão violenta que a parte da frente do TL ficou toda amassada, deixando o carro estático, travado pelo forte impacto da batida. Inconformado com o ocorrido, apenas lhe disse:

– “Chumbinho”, você não disse que é motorista de carreta?

– Se eu estivesse dirigindo carreta, teria dividido a pedra.

Voltamos de carona e trocamos de carro e de motorista para seguir viagem até Estrela do Norte.

Para chegar a Jaú tínhamos que ir até Mata Azul, distrito de Formoso, viajando por uma estrada municipal de Peixe, sem nenhuma infra-estrutura. Havia uma ponte sobre o rio Piabanha, onde o motorista tinha que ser verdadeiro artista do volante. A ponte não possuía assoalho, e o carro teria que passar sobre duas estacas de aroeira. Contando com a eficiência do Chico Maneco fizemos todo trajeto sem maiores complicações até chegarmos ao Jaú.

Ficamos hospedados na pousada do Ventura. Cidadão simples, conhecedor profundo da região. Recebeu-nos atenciosamente, preparando paçoca de carne batida em pilão e frango caipira na caçarola. Em pouco tempo tomamos conhecimento das coisas locais. A pousada do Ventura não estava preparada para abrigar toda a caravana. Vicente Alencar, Chumbinho e Chico Maneco foram para a pousada do Piolho, assim conhecida pela grande quantidade de galinhas poedeiras debaixo das camas. Não era sempre que hóspedes procuravam sua casa de hospedagem, por isso agasalhava suas galinhas dentro de casa evitando a destruição por raposas, gambás e outros animais silvestres.

No dia seguinte, levantamos bem cedo, para irmos até as terras pretendidas, na região do Piabanha. Beleza natural incomparável. Divididas por duas cercas naturais: de um lado o rio Piabanha e do outro uma enorme serra, a mais alta e intensa do local, composta de cerradão invejável. Fomos até o local num jipe Willis, alugado pelo Ventura, único capaz de circular ali, pela inexistência de estrada e grande quantidade de cupins. Foi um verdadeiro rally para fazermos o percurso de ida e volta.

Retornando ao Jaú, sol escaldante, cansados pelo solavanco do jipe e pelas caminhadas que fizemos pelas trilhas do cerradão cobiçado, fomos diretos para a pousada do Ventura. Mal havíamos nos acomodado, apareceu no terreiro em frente a porta de entrada da pousada um cidadão de estatura mediana, aproximadamente 40 anos, portando na cintura uma enorme peixeira. Ao avistá-lo, Ventura com voz baixa nos esclareceu que aquele era o valentão do lugar. Advertiu:

– Não tenham medo, ele não ofende ninguém!

Horácio, este era seu nome, adentrou a pousada e foi logo determinando que Ventura buscasse uma cerveja das expostas na prateleira próxima ao telhado. Ventura pegou a garrafa quente e tirou a poeira com um espanador. Horácio ao vê-la sobre a mesa determinou que trouxesse quatro copos, que estavam mergulhados numa bacia de alumínio, cuja água já estava ali há alguns dias. Quando Ventura retirou o abridor da gaveta, recebeu ordem do Horácio para que não abrisse a garrafa. Tirou a peixeira da cintura e estourou a tampinha que bateu no telhado e voltou sobre a mesa, enquanto o líquido saía em forma de espuma. Rapidamente passou a mão nos copos e foi enchendo cada um deles com aquele líquido quente e espumoso. Joceli Machado apressou-se em beber o seu copo e antes que tomasse o último gole solicitou ao Ventura que trouxesse outra cerveja:

– Se possível mais quente e sem limpar o “casco”!

Joceli pegou a garrafa fazendo pontaria aleatória, que acabou na direção do rosto do valentão, tirou em ato contínuo o revólver da cintura, abrindo a garrafa com o gatilho do 38. A tampinha explodiu no peito de Horácio que tomou um banho de espuma da cerveja quente que saía em grande jato. Horácio balbuciou algumas palavras inaudíveis, deixando o local para nunca mais ser visto por nós.

No outro dia fomos a Peixe na caminhonete do Chico Maneco. Mesmo sendo veículo novo, a caminhonete não estava com todos os indicadores do painel funcionando.

Quando já tarde, na metade do percurso de volta ao Jaú, acabou o combustível, nos deixando na estrada. Chico Maneco e “Chumbinho” decidiram acompanhar um mateiro que passava pelo local, quando tentariam buscar socorro. Vicente Alencar, Hilton Lucena, Joceli Machado, um velhinho que nos pediu carona e eu ficamos no local. Quando perguntamos ao nosso carona sobre o movimento da estrada, respondeu:

– Só na sexta-feira o Tião da bagagem passa por aqui!

Era terça-feira e não sabíamos se Chico Maneco retornaria.

Vicente Alencar, lembrando da sua passagem pelo exército, resolveu fazer da caminhada de retorno tarefa agradável.

– Quando cumpri meu serviço militar, aprendi que para uma grande caminhada é recomendável que o percurso seja feito em forma de marcha, em fila indiana.

Assim determinou que Hilton Lucena ficasse na frente do pelotão e o velhinho no último lugar. Ele, Joceli e eu ficaríamos no meio. Disse-me antes de autorizar o início da marcha:

– Adhemar, aprendi, também no Exército, que onça só ataca quem está na frente ou atrás do pelotão.

Formação de acordo com as ordens do comandante Vicente Alencar, começamos a jornada:

– Pelotão, sentido! Um, dois! Um, dois! Um, dois! Levante a cabeça, estufe o peito e marque a cadência... Um, dois! Um, dois...

Dando instrução com voz de comando, Vicente fez com que vencêssemos o primeiro quilômetro do percurso. Já estava escuro e apenas enxergávamos o clarão das queimadas, naturais e muito usadas naquela época do ano. Os integrantes do pelotão, animados, erguiam suas vozes que ecoavam pelo vale:

– Levante a cabeça, estufe o peito, marque a cadência...

O pelotão repentinamente não ouviu mais a voz de comando do líder Vicente Alencar, apenas barulho de corpo caindo ao chão e rolando ribanceira abaixo. Perdendo o equilíbrio no terreno inclinado, Vicente escorregou, caiu rolando pela encosta da estrada até chegar ao fundo do vale. Quando parou, só ouvimos sua voz de comando:

– Pelotão! Fora de forma...

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